Dossiê do Apito – Pela Revitalização da Arbitragem Brasileira

O VAR (árbitro assistente de vídeo) foi implementado no futebol brasileiro em 2018 com o intuito de minimizar erros de arbitragem. Contudo, passados alguns anos, podemos afirmar que, apesar de problemas terem sido solucionados, como impedimentos e bolas ultrapassando a linha do gol, diversos outros surgiram.

Entretanto, a responsabilidade não é do equipamento tecnológico, mas das pessoas por trás da ferramenta – mesmo em casos como os impedimentos dos jogos Atlético Mineiro e São Paulo (2020) e Vasco e Internacional (2021).

Os equívocos partem da natureza humana, ou seja, dos árbitros e suas equipes. Porém, a culpa não é somente dos que vestem azul, amarelo e preto e estão no campo e na cabine do VAR.

A arbitragem brasileira tem falhas estruturais. Sana-las trará valor, respeito e integridade ao campeonato, permitindo que discutamos exclusivamente o jogo, não seu staff.

Quando se analisa mais os figurantes do que os atores principais, grande parte da culpa está no diretor.

Por isso, questiona-se: quais os principais problemas da arbitragem brasileira?

Desumanização

Torcedores, dirigentes, técnicos e jogadores são os agentes que mais destratam árbitros. Desde xingamentos de arquibancada até ofícios à Confederação Brasileira de Futebol pedindo afastamento de determinado nome, os seres humanos com apito na boca são vistos como prejudiciais aos interesses do clube, seja ele qual for.

Ao invés de encarar o juiz como peça fundamental para o bom andamento da partida, muitos preferem a facilidade de jogá-lo aos leões. O time do sujeito nunca jogou mal, o elenco não faz jus às ambições da torcida e a diretoria não contratou pessimamente. O campeonato foi perdido ou o rebaixamento ocorreu somente pelas péssimas decisões sobre faltas e cartões de um árbitro em uma partida.

Afastar responsabilidade e identificar um bode expiatório se tornaram ações corriqueiras no futebol nacional. Lidar com enorme pressão não é fácil, especialmente para homens e mulheres odiados por todos em estádio com 40 mil pessoas.

Omissa, a CBF deixa seus filiados ao léu, sem defendê-los nominal e publicamente, acatando pedidos absurdos de clubes para mudar escalas de arbitragem e não explicitando os critérios e regras para jornalistas e grande público, limitando-se a fazer palestras fechadas nos clubes.

Peca também quem é conivente com tamanho linchamento.

Incoerência Interpretativa

Não se pode ignorar a quantidade de decisões discrepantes entre árbitros, em especial no que se refere ao chamado do VAR e bola na mão dentro da área.

Já na quarta página do Manual para Árbitros Assistentes de Vídeo (AAVs/VARs) da CBF está exposto quando se deve utilizar o equipamento. Lances de: 1- Cartão vermelho; 2- Gol; 3- Pênalti e; 4- Erro de identificação. Ademais, somente quando há erro claro, prevalecendo a decisão de campo em situações interpretativas.

O juiz de campo pode, ainda, recusar a interferência do VAR caso julgue improcedente a recomendação de revisão.

Fluxograma VAR

Teoricamente, há predominância da autonomia do árbitro de campo, valorizando a mínima interferência com o máximo benefício.

Na prática, o cenário é outro. Com receio de errarem e envoltos – sozinhos – na monstruosa pressão acima relatada, juízes viram reféns das ordens vindas do VAR. Aguardam até o último instante para apitarem lances simples.

Além disso, pênaltis, em especial de infrações de mão na bola, aumentaram substancialmente em relação aos últimos anos, batendo recorde no Brasileirão 2020.

Números totais de pênaltis em cada Brasileirão – Os de 2020 foram contabilizados até a 36ª rodada

Números totais de pênaltis em cada Brasileirão – Os de 2020 foram contabilizados até a 36ª rodada

40% dos pênaltis da edição 2020 do Brasileirão são oriundos de toques na mão

40% dos pênaltis da edição 2020 do Brasileirão são oriundos de toques na mão

A Regra do Jogo, vinda da própria FIFA e avalizada pela CBF, está mais confundindo os árbitros do que clareando decisões. Análises subjetivas de temeridade, força excessiva e imprudência desnorteiam os indivíduos envolvidos no lance, do juiz ao jogador.

Quanto à bola na mão, a Regra 12 (páginas 110 a 125) discorre longamente sobre quando é ou não infração, usando critérios etéreos como posição antinatural e altura acima dos ombros para auferir se há ou não tiro livre direto.

Chutes próximos, cabeçadas disputadas e até mesmo bolas na braço com estes colados ao corpo estão provocando penalidades.

Debates sobre compilação de regras mais objetivas e diretas precisam se fazer presentes, mas sempre respeitando velocidade e força observadas em campo pelo árbitro de jogo e sua autonomia no processo.

Estrutura Estadual e Nacional

Pegaremos como exemplo a Federação Gaúcha de Futebol (FGF), que teve seu funcionamento destrinchado no artigo Árbitro de Futebol: A Construção de uma Carreira, produzido pelos pesquisadores Vinicius Palau, Luciano Jahnecka e Luiz Rigo.

A eleição para presidência da Federação Gaúcha – padronizada entre as demais do País – é consumada pela votação entre seus filiados, os clubes de futebol. Quando se candidatam, os postulantes ao cargo devem apresentar seus dirigentes, inclusive o responsável pela Comissão Estadual de Arbitragem de Futebol (CEAF).

Através do relato do Diretor da CEAF/RS à época, percebe-se o caráter amador da escolha do quadro de gestão:

“[…] o presidente da Federação me convidou para ser o presidente da CEAF/RS e Diretor Executivo. Ele disse que eu tinha que pegar mais quatro elementos. Eu disse: pra mim [sic] trabalhar, eu tenho que escolher com quem é que eu vou trabalhar. Ele disse não, vou te indicar só um, o resto é contigo, tá. Aí foi indicado, através de um pedido do Simon pra ele, pra ele indica o Mocellin pra trabalha comigo. Eu tinha o ‘Pancho’ que é o Flávio Abreu, que nós nos criamos juntos, conheço ele há trinta anos, mais de trinta anos, quarenta anos. Peguei o ‘Pancho’, convidei ele. Perguntei ao ‘Pancho’, vem cá tu que é do meio da arbitragem quem é [sic] os caras que pode ter o nosso perfil pra trabalhar? Indicou o Cunha, vamos fazer uma reunião com o Cunha, fiz uma reunião com o Cunha, aceitei o Cunha. Aí falei pro Cunha quem é que tem aí? Ele me indicou o Pandolfo. Fiz reunião com Pandolfo e acertei. É [sic] esses os caras que têm o perfil”

A CEAF tem o papel de regular a arbitragem do respectivo Estado, além de municiar as delegações regionais/municipais na preparação e inscrição de juízes desses locais. No caso do Rio Grande do Sul, os árbitros são elencados de acordo com o curso que realizaram. Se o fez no interior, estará filiado à respectiva delegacia regional. Caso tenha feito em Porto Alegre, será um “árbitro da capital”.

Previamente ao Gauchão, juízes da Séria A do Campeonato Brasileiro se encontram com os árbitros estaduais para palestrar. A CEAF/RS ainda realiza reuniões periódicas (com espaçamento e calendário não padronizados) para aprimorar e atualizar os integrantes de seu quadro.

Entretanto, tais oportunidades são exclusividade dos “árbitros da capital”. Como explica o artigo, a falta de estrutura da CEAF/RS não permite o acompanhamento direto dos juízes interioranos. Às delegações regionais fica a incumbência de fazer um ranking dos seus participantes e enviar à CEAF.

Importante ressaltar os avanços no polo estrutural: súmula on-line, categorias de arbitragem (classes A, B e C) e relatório de observação de árbitros surgiram na FGF e espalharam-se pelo âmbito nacional. As boas ideias de uma Federação conseguiram atingir e melhorar nosso futebol.

Porém, este aspecto federalista fomenta outras mazelas para o esporte brasileiro. Federações Estaduais e CBF não tem relação hierárquica, são entes diferentes. Suas diferenças de formação de profissionais, metodologia de avaliação e critérios de seleção geram constrangimentos entre árbitros que apitam jogos nacionais, pois cada um enxerga o lance sob perspectiva diferente.

A falta de universalização de capacitação e formação dos árbitros transparece quando vemos dois árbitros julgando o mesmo lance com vieses completamente díspares. Por exemplo, um analisando como cartão vermelho e outro deixando o jogo seguir. Quem acompanha o esporte percebe tal dispersão de conceitos com os comentários da transmissão, como “ele costuma apitar falta nessas jogadas”, “esse gosta de ‘picotar’ o jogo” e “não concordo com a decisão dele, mas na escola X de arbitragem é assim que eles apitam”.

Ao atingir o ranking máximo, o árbitro pode ser indicado para a CBF e, se decidido pela Confederação, à FIFA.

O quadro de juízes da CBF é composto por indicações das CEAFs. Aplicados os testes técnico e físico, se houver vaga, o postulante será chamado. Somente deixará seu posto em dois casos: atingir a idade limite (50 anos) ou ser reprovado em avaliação física, técnica ou teórica.

Já para a FIFA, deverá ser apontado pela CBF. Os requisitos são: ter entre 25 e 35 anos e falar bem inglês e espanhol. A revogação do posto se dá ou por pedido da respectiva Comissão Nacional ou atingir os 50 anos de idade.

É salutar informar que a eleição para Presidente da CBF é feita por Federações (voto de peso 3) e seus filiados – os clubes de futebol (com peso 1). Assim, mantem-se a arcaica cadeia de poderes indefinidamente e impede-se a reestruturação dos Estaduais, matéria a ser debatida em outro momento.

Amadorismo

No país do futebol, o amadorismo segue sendo a regra. A arbitragem brasileira não é profissional, ou seja, não tem direitos trabalhistas plenos envolvidos. Por conta disso, os juízes têm dupla jornada, conciliando um emprego formal com a atividade futebolística.

Do ponto de vista legal, existem duas leis que tratam da profissionalização: Lei Pelé (Lei nº 9.615/98) e Lei 12.867/13. Ambas abominam o vínculo empregatício entre árbitro/federações:

Lei Pelé. Art. 88. Parágrafo único – Independentemente da constituição de sociedade ou entidades, os árbitros e seus auxiliares não terão qualquer vínculo empregatício com as entidades desportivas diretivas onde atuarem, e sua remuneração como autônomos exonera tais entidades de quaisquer outras responsabilidades trabalhistas, securitárias e previdenciárias.

Mas por que profissionalizar?

Garantir dedicação exclusiva, preparação de excelência e aparatos legais de remuneração e segurança jurídica permitirão que os árbitros brasileiros foquem no futebol e consequentemente na busca pelo primor profissional.

Outros países, como a Inglaterra, apostam nesse formato em suas ligas nacionais e obtêm resultados expressivos no que tange à qualidade da arbitragem. Cada árbitro contratado recebe algo em torno de 70 mil libras anuais (R$ 537.700), além de um complemento por partida, variável entre R$ 2000 e R$ 5000. Além disso, preparação física, técnica e psicológica são responsabilidade da Federação Inglesa.

No Brasil, um árbitro FIFA recebe aproximadamente R$ 4000 por partida de Série A, mas para isso deve ser sorteado para o jogo. Aqui, o sistema funciona na base da seleção randômica, com escolhas predeterminadas sendo exceções de acordo com o peso da partida em questão. Logo, não há previsão de renda mínima para o juiz.

Preparação física, técnica e psicológica ficam a cargo do próprio árbitro, sem respaldo financeiro da CBF ou Federações Estaduais. As entidades desportivas ajudam com estadia e transporte, com valores e meios de locomoção estipulados de acordo com a distância a ser percorrida e o tempo que ficarão no local.

A remuneração é bastante volátil. O blog do Allan Simon listou os valores que a arbitragem, em cada posto, recebe por jogo na Copa do Brasil de 2020. As variantes vão desde à posição do juiz no ranking da CPF até a fase do campeonato.

Tabela remuneração árbitros Copa BR - 20

Se fosse profissionalizada a arbitragem, quem iria pagar?

O veio federalista de nossos entes desportivos inviabiliza a centralização de contratação dos árbitros pela CBF. Uma única empresa não seria capaz de gerenciar todos os ramos do futebol nacional, alcançando campeonatos regionais extremamente específicos.

As Federações Estaduais têm potencial para enxergar melhor o que acontece ao seu redor, mas se não tem capital nem para observar árbitros promissores, como faria para honrar tal folha de pagamento?

Apesar de complexo, é uníssono entre amantes do esporte o coro pela profissionalização da arbitragem brasileira. Nas palavras do antigo presidente da CEAF/RS:

É a única alternativa para arbitragem diminuir a margem de erro, a única, não existe outra. O árbitro, para ser exigido, como tem que ser exigido, tem que ter uma remuneração fixa. Tem que trabalhar exclusivamente para arbitragem. Aí ele vai se tornar um profissional da arbitragem, vai ter os cursos diários, os treinamentos diários, tanto quanto o jogador de futebol”.

Como Operacionalizar essa Revolução?

  • Primeiro Passo: Profissionalização

Tornar o árbitro um profissional do esporte é o ponto de partida. Isso perpassa pela legislação vigente e interesse do sistema organizacional do futebol nacional. Portanto, deverá ser regulamentada pelo Congresso, revogando o parágrafo único do artigo 88 da Lei Pelé e alterando robustamente a Lei 12.867/13 em prol da regulamentação da profissão.

Em seguida, será necessário definir entre os contratantes (CBF e Federações Estaduais) quem pagará os salários. O diálogo será fundamental para alcançarem um posicionamento assertivo quanto ao tema, mas sugere-se o escalonamento progressivo dentro do ambiente regional para, posteriormente, caso interesse à CBF, a própria Confederação faz oferta de trabalho aos profissionais que julgar aptos ao cargo.

Exemplificando, as Federações Estaduais analisam e oferecem seus cursos de arbitragem seguindo parâmetros estabelecidos pela CBF (mais à frente entraremos nesse ponto). Entre seus alunos, realiza processo seletivo para, se quiser, contratar alguns para comporem seu quadro profissional. Elenca-os de acordo com seus critérios internos e remunera-os com o estabelecido em lei/contrato.

A CBF terá seu próprio staff e profissionais. Quando surgir a necessidade de repor indivíduos, poderá dirigir-se aos árbitros das Federações Regionais e analisar seu desempenho, fazendo então proposta de trabalho para eles.

Esse formato baseia-se na estrutura inglesa de arbitragem, adaptando-o à vastidão do território brasileiro.

  • Segundo Passo: Reestruturação Técnica

Não se pode apitar diferente no Norte e no Sul do país. A uniformização da arbitragem é essencial para não ocorrer interferência no estilo de jogo dos times em campo. Saber como cada juiz enxerga a partida se tornou estratégia competitiva, gerando perda de tempo e de treinamentos baseados no esporte. Ainda, regras nebulosas sobre infrações, cartões e andamento de jogo confundem os seres humanos envolvidos na partida, do jogador ao narrador.

Para isso, a CBF deveria padronizar os cursos de arbitragem no Brasil, cabendo a ela a aprovação/reprovação dos materiais a serem divulgados nas Federações Estaduais. O controle de qualidade carimbaria o selo da uniformização dos critérios de arbitragem.

Devemos absorver o que há de melhor pelo mundo e incorporar ao nosso futebol. Com árbitros profissionais, focados exclusivamente no esporte, é possível realizar excursões para outros países para estudar estilos de arbitragem e como analisam a regra do jogo.

Convidar membros da UEFA para ministrarem aulas por aqui e até mesmo enviar alunos para os cursos europeus permitiriam não só a qualificação do profissional, mas a observação do que ainda podemos melhorar em diversos setores da gestão esportiva.

Contudo, a profissionalização não é somente de quem está no meio do campo. Federações Estaduais, com enfoque nas Comissões Estaduais de Arbitragem de Futebol, urgem por pessoas capacitadas em gestão e conhecedoras do ramo de arbitragem. O sistema baseado em indicações, “diz que me diz” e frivolidades políticas empobrece e descredibiliza o esporte, sem vislumbrar caminhos para melhora pois seus líderes não sabem nem em qual direção andar.

  • Terceiro Passo: Humanização e Comunicação

A UEFA lançou série documental sobre o cotidiano de seus árbitros. Intitulada Man in The Middle (“O Homem no Meio”), ela mostra os seres humanos por trás do apito, gerando conexão, intimidade e respeito pelos profissionais, uma vez que apresentam ao público seus sonhos, medos, trabalho e família.

Humanizar todos os envolvidos na realização do espetáculo do futebol permite compreender que quem está ali é só mais um apaixonado pelo esporte, sujeito a erros e acertos por também ser um ser humano.

Oferecer um canal livre e sincero de diálogo entre sociedade e comissão de arbitragem garante novos olhares e perspectivas para os dois lados, aproximando pessoas de pessoas. Árbitros nada mais são do que isso: pessoas.

Ter preconceitos contra alguém somente por ministrar o andamento de uma partida de futebol é horripilantemente comum em nosso país, mas não é exclusividade nossa.

Até mesmo na Inglaterra, com modelo superior ao nosso em muitos aspectos, existem cidadãos ultrapassando o limite das críticas razoáveis. Mike Dean, árbitro da Premier League, pediu para não participar de jogos da liga por ter sofrido ameaças de morte de Hooligans do West Ham.

Comportamentos irracionais como esse mostram a importância de olhar o outro como humano e a doença que a radicalização pode se tornar.

No Brasil, uma iniciativa interessante relacionada à comunicação e humanização dos árbitros vem do Desimpedidos, canal humorístico do YouTube focado em futebol.

Nele, existe um programa de entrevistas chamado Bolívia TalkShow que, em recentes edições, convidou grandes árbitros do esporte nacional para participarem. Um olhar bem-humorado dessas pessoas alivia as tensões nascidas nos gramados, possibilitando ao torcedor e dirigentes que vejam quem é aquela pessoa fora do estádio.

Nossos árbitros precisam de infraestrutura, preparo, profissionalização e empatia.

Como complemento ao Dossiê apresentado, sugerimos que você assista às entrevistas descontraídas de notórios árbitros brasileiros:

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