Pouco após a aprovação da Lei 14.193/21, instituidora da Sociedade Anônima do Futebol no Brasil, tivemos agremiações renomadas adotando esse modelo societário. O Cruzeiro foi “comprado” pelo Ronaldo Fenômeno. John Textor, magnata norte-americano, está bem próximo de fazer o mesmo com o Botafogo. Outros clubes da primeira divisão também migraram para a SAF, casos de Cuiabá e América-MG, mas ainda sem o mesmo grau de investimento.
É inevitável a transformação de Associação Civil para Sociedade Anônima entre os times do nosso País? Ser uma SAF é sempre melhor?
Devemos compreender o contexto brasileiro antes de darmos qualquer resposta.
História
Originários do início do Século XX, os clubes brasileiros nasceram associações. Isso significa que são organizações privadas sem fins lucrativos. O objetivo dessa união de indivíduos é o desenvolvimento esportivo.
Os times representavam a cultura local e centralizavam as opções de lazer da região. O Palmeiras, fundado em 1914, juntou os imigrantes italianos que trabalhavam em indústrias paulistanas. O Fluminense foi criado por um aristocrata inglês morador da nobre localidade carioca, agregando a elite em ambiente luxuoso do Rio de Janeiro. Funcionários de armazéns em Pernambuco queriam participar de competições de remo no Rio Capibaribe e para isso formaram o Clube Náutico Capibaribe, um dos mais tradicionais do Nordeste brasileiro.
Clubes se tornaram os principais polos de lazer e entretenimento das famílias, concentrando o sentimento bairrista dos moradores e fomentando a competitividade entre instituições de diferentes localidades. Os jogadores não eram atletas, mas sócios. Profissionalizar atletas era algo insipiente.
Mas a população das localidades foi aumentando, assim como o interesse e investimento no futebol. Para vencer, é necessário ter os melhores atuando pelo seu time. Está pavimentado o percurso para chegarmos ao cenário contemporâneo.
Atualidade
A realidade regionalista não tem mais relação com o ambiente futebolístico moderno. A humanidade evoluiu e o esporte acompanhou as mudanças.
Escudos se tornaram marcas. Atletas viraram celebridades. O futebol encorpou, se tornando um negócio. Surge o futebol-mercado.
Nesse contexto, o modelo de associação permaneceu. Sócios tomando decisões sobre a agremiação, desde a estrutura de lazer até contratações milionárias para o time profissional de futebol. A discrepância de competência necessária para analisar os dois espectros exemplificados expõe a complexidade envolta nos clubes brasileiros.
Com a Lei da SAF, abre-se a possibilidade de os clubes separarem a associação (sem fins lucrativos) do comando do futebol profissional. Este, sob regência da sociedade anônima, com fins lucrativos.
Além das diferenças tributárias e de governança entre ambos modelos empresariais, teoricamente, os novos diretores serão profissionais experientes no ramo esportivo e de mercado. Eles visarão obter lucro e títulos, sem se preocuparem com questões políticas internas do clube.
Neste momento embrionário da SAF, as maiores entidades brasileiras não demonstraram interesse em adotá-la, com exceção de Cruzeiro e Botafogo. Porém, os dois times, apesar de colossos, não estavam em condições de negociar, sendo reféns das maiores dívidas do futebol brasileiro.
Casos Cruzeiro e Botafogo – Desespero e Oportunidade
Raposa e Fogão têm dívidas próximas à 1 bilhão de reais, mas elas foram atingidas por trajetórias diferentes. Enquanto o time Celeste sofreu com crimes cometidos por antigos administradores, o Mais Querido acumulou gestões incapazes e irresponsáveis.
Grandes investidores – Ronaldo e John Textor – abocanharam as oportunidades concedidas por Cruzeiro e Botafogo, aproveitando as dimensões nacional e internacional que geram. Torcida fidelizada, história desportiva e grandes competições estão garantidas a eles.
Entretanto, será preciso conciliar expectativas de torcedores com as de acionistas. Atritos serão inevitáveis. O Cruzeiro dispensou seu maior ídolo, o goleiro Fábio, por não se adequar às “medidas orçamentárias” da nova administração. Qual o limite entre os dois universos?
Ainda, para obter lucro e pagar os débitos, a forma mais rápida conhecida no futebol é a venda de jogadores. Esses clubes irão abdicar da competitividade para virarem celeiro de craques, vendendo-os assim que despontam?
A reflexão se faz necessária, mas é preciso aguardar os futuros desdobramentos desse novo mercado.
Há um formato ideal?
As perspectivas econômicas apontam para alta disseminação das SAFs entre clubes pequenos e medianos que tenham:
- Mínima infraestrutura;
- Número estável de torcedores, e;
- Contas relativamente auditadas e controladas.
Equipes do primeiro escalão nacional não devem engajar no projeto até passarem por dificuldades semelhantes às de Cruzeiro e Botafogo porque se garantem financeiramente mesmo sem a estrutura empresária por trás.
Não se pode determinar que, em todos os casos, a adoção da SAF é sinônimo de sucesso. Existem tanto associações louváveis como clubes-empresas deploráveis. O Figueirense clube-empresa foi catastrófico, afundando uma das mais tradicionais camisas de Santa Catarina na Série C do Brasileirão. Já o rival Athletico Paranaense, no modelo associação, vem alavancando sua marca e se firmando entre os grandes do futebol nacional. Em 2021, foi bicampeão da Copa Sulamericana.
Sejam profissionais ou sócias, não pode se perder de vista que as decisões são sempre tomadas por pessoas. Capacitadas ou não, conectadas ao clube ou desvinculadas emocionalmente, são características a serem pesadas para efetuar uma mudança dessa magnitude em qualquer instituição.
Se será bom para o mercado nacional, não sabemos. Contudo, uma certeza é que veremos muitas SAFs surgindo. Resta acompanhar e torcer.
Vale a pena ler também:
- SAF e a cultura organizacional dos clubes de futebol brasileiros, de Fernando Schena;
- Sociedade anônima do futebol: uma nova oportunidade para os clubes brasileiros, de Mariana Chamelette e Gabriel Delbem Bellon;
- O Mapa do Clube-Empresa no Futebol Brasileiro, por Rodrigo Capelo.
Por Pedro Parada